domingo, 25 de setembro de 2011

Resenha: AS CIDADES INDIZÍVEIS


Foi no Fantasticon, Simpósio de Literatura Fantástica ocorrido em meados de agosto, que “As Cidades Indizíveis” (Llyr Editorial, 180 páginas) chegou pela primeira vez as mãos do público, numa das estreias da Llyr, selo dedicado à literatura fantástica que opera como parte da editora Vermelho Marinho, aqui do Rio. O projeto da coletânea, que conta com a participação de alguns pesos pesados da ficção científica/fantasia brasileira, já rodava pelos bastidores há dois anos, até encontrar uma casa na recém-nascida editora, comandada pela carioca Ana Cristina Rodrigues. A organização dos contos ficou nas mãos de Fábio Fernandes e Nelson de Oliveira.

São oito contos e uma noveleta que procuram trazer o fantástico, em maio ou menor grau, para dentro do ambiente urbano. As abordagens são muito particulares e o resultado final, bastante diversificado, flertando ora com a fantasia urbana, ora com a ficção científica cyberpunk, ora sabe-se lá o quê. Considerando como um todo, o livro me agradou, embora alguns dos contos tenham saído prejudicados pelo excesso de atenção dedicada à forma, com a história e personagens ficando em segundo plano.

Um a um:


Galimatar – Fábio Fernandes

O autor de “Os Dias da Peste” abre os trabalhos com um texto muito interessante, ambientado num futuro em que uma África utópica se ergue das ruínas de guerras e fatais erros da ciência. Em seu seio, uma nova Etiópia se estabelece como centro do mundo – uma “Etiópia Pop”, ou EtiPópia. O dinheiro foi substituído por um sistema de trocas conhecido como potlach, e nesse novo mundo é lá que as coisas acontecem.

Nesse cenário, conhecemos a Xamanesa e o Homem Azul, duas figuras enigmáticas que se encontram em meio à agitação da EtiPópia. Ninguém sabe quem é a mulher, de onde ela veio, qual é sua história; o homem está de partida para o espaço, juntar-se à procura de vida fora da Terra. A ação do conto consiste basicamente do contato entre ambos, cujo combustível é uma irresistível curiosidade mútua.

Cenário e personagens são apresentados de maneira fluida e bem construída. A narrativa se mantém interessante por toda a aura de estranheza que envolve a Xamaneza e o Homem Azul. A linguagem do autor é simples e de muito bom gosto. O conto se sairia um pouco melhor com um final menos corrido, mas não chega a comprometer. Uma boa abertura.


Céu do Nunca – Guilherme Kujawski

Um escritor solitário (de literatura fantástica, não por acaso) vai se tornando cada vez mais obcecado por uma cidade que só existe em sua mente.

E é basicamente isso.

O texto tem claras qualidades. Linguagem rica, um protagonista bem desenvolvido, reflexões interessantes acerca da criação literária. Mas a falta de conflitos deixa a coisa arrastada demais, e o desfecho para o qual a narrativa se encaminha me pareceu um tanto insatisfatório. A piração do cara em torno da cidade que vai surgindo em sua mente aos poucos é muito bem descrita, mas isso é praticamente tudo que o autor nos apresenta. Não é um texto que fique na memória.


O longo caminho de volta – Ana Cristina Rodrigues

Na trama, a exilada Clio volta para sua cidade natal, Biblos, a cidade-biblioteca. Protegida por uma magia que impede a entrada de forasteiros e preserva os livros das mudanças climáticas, a cidade vive de vender seu conhecimento para outros povos. Dez anos atrás, Clio fora banida como pena por suas intenções perigosas: libertar o conhecimento dos limites da cidade, desafiando, assim, o Conselho de Biblos e seu desejo pelo status quo. Pela Lei, a mulher tem direito a uma revisão em sua pena – mas os planos de Clio não envolvem esperar sentada por justiça.

O conto agrada pela atenção dedicada a trama e aos personagens, e a própria Biblos, essencial para que o leitor acredite no que está lendo. Os “bairros” se dividem de acordo com seções (Medicina, Feitiçaria, Astronomia), tal e qual uma verdadeira biblioteca. Outra boa sacada é o desprezo do Conselho pelo setor de Ficção, cujos moradores exercem funções menores na cidade, numa ironia interessante que demonstra bem como as coisas funcionam lá dentro.

Com bons personagens e uma boa história, a leitura flui com naturalidade, o leitor preso às páginas. O desfecho é particularmente bem pensado. Sem dúvida um dos melhores da antologia.


O dia em que Vesúvia descobriu o amor – Octávio Aragão

O menor conto do livro é também um dos mais interessantes, partindo de um plot que por si só merece atenção: uma cidade que um belo dia ganha vida, e mais, se apaixona por outra, pondo-se a se mover em sua direção, carregando tudo e todos que a compõem.

As descrições de Aragão criam um forte sense of wonder que faz com que o conto fique na cabeça ao término da leitura. Uma vez desperta, toda sorte de pensamentos passa a se desenrolar na mente de Vesúvia, e o autor traduz suas sensações de tal modo que a consagra uma das personagens mais marcantes da antologia.


Harmonia – Roberto de Souza Causo

Ao menor, segue-se o maior. A noveleta de Causo segue os passos de Sandra Matsugane, uma animadora de festas que tem a vida virada de ponta cabeça quando Mônica, amiga com quem dividia casa, é encontrada morta. A polícia rapidamente a associa com atividades de prostituição com as quais Sandra jamais sonharia que a amiga estivesse envolvida. A moça passa a investigar o caso por conta própria.

A noveleta corre completamente realista por um bom tempo, inserindo-se abertamente dentro do gênero policial, para ir aos poucos caminhado para dentro do fantástico e abraça-lo inteiramente do meio em diante. Todo o clima criado pelo autor no momento em que o real começa a ser tocado pelo maravilhoso é um dos pontos altos do texto. A parte policial poderia ter sido melhor trabalhada – a trama parece um tanto imprecisa em certos momentos, e o final corrida prejudica o todo –, mas quanto à fantasia presente na história, não há do que reclamar. O autor consegue como poucos na coletânea inserir o fantástico dentro do urbano. Juntamente com o da Ana Cristina Rodrigues, meu favorito.


Primeiro de Abril: Corpus Christi – Luiz Bras

(Quem já leu minha resenha da coletânea “Imaginários vol. 4” talvez estranhe, uma vez que há um conto com o mesmo título e do mesmo autor no livro da Draco. Sim, trata-se do mesmo texto – de certa forma. Aqui, o temos completo; lá, um trecho que faz sentido isoladamente, tendo por isso sido publicado no quarto volume da série.)

Quando a cidade de Primeiro de Abril ganha consciência e passa a agir independente da vontade dos humanos, um grupo de ciborgues precisa enfrentar a situação e tentar reestabelecer o controle. Se o fragmento publicado pela Draco já era bastante louco, aqui temos a visão completa da doideira.

Bras – pseudônimo de Nelson de Oliveira, organizador – imprime um ritmo bem peculiar à narrativa, conduzindo-a com linguagem cuidadosa, apostando na forma para seduzir o leitor. Consegue. Mas não fica só nisso, cria personagens divertidos e os coloca no meio de uma situação que gera interesse. O resultado final é satisfatório. Frustra um pouco o silêncio derradeiro do autor em relação a certos elementos da trama que vão sendo levantados só para não receberem uma explicação para sua relevância (como a questão do narrador, sua irmã e um certo roubo praticado por ela). Toda a piração habilmente narrada que vimos anteriormente compensa, mas só em parte.


O Coletivo – Luiz Henrique Pellanda

Dois narradores em paralelo, um homem e uma mulher, contam os lados de uma história que envolve cegueira, duas irmãs, um romance proibido e uma cidade que sobrevive do que morre no nosso mundo. Um conto arrastado, com personagens pouco calorosos e uma trama que parece se mover para lugar nenhum. Muitíssimo bem escrito, deve-se dizer, mas fora isso não apresenta nenhum grande atrativo ou elemento que gere interesse. Acabou não me chamando a atenção.


Mnemomáquina – Ronaldo Bressane

Um conto confuso, que acompanha alguns personagens numa São Paulo quase que inteiramente tomada pela água. Só é possível trafegar usando hovercrafts e veículos similares. Só conhecemos o narrador pouco antes da metade da história, e o pouco que sabemos sobre ele reflete o pouco que ele mesmo sabe sobre si. O tom irônico, coloquial, e a ambientação (que me pareceu flertar com o cyberpunk) decadente são as melhores coisas do texto. Fora isso, o que se tem são personagens que são inicialmente desenvolvidos para no fim das contas sumirem, sem que se esclareça sua relevância para a trama, e um desfecho artificialmente enigmático, apoiado na recusa do autor em oferecer respostas para as perguntas que desperta sabe-se lá por que razão. Frustrante.


Cidade Vampira (Entidade Urbana) – Fausto Fawcett

O conto que fecha a antologia é o que leva às últimas consequências a ideia de cidade. No universo criado por Fawcett, todo o planeta se converteu num enorme amontado urbano: a Tera Cidade Terra. Nesse contexto, uma seita de gnósticos espalha cadáveres por todos os cantos. Em sua crença, certos tipos de rituais conseguirão atrasar o juízo final, a descida do deus alucinado que criou a raça humana e nela incutiu o desejo pela urbanidade. Presos nas cidades, os homens não conseguem alcançar o conhecimento que os libertaria. Um antigo policial, El Diablo, que antes caçava gnósticos, enlouqueceu e passou para o lado deles. O tenente Amarildo e a psicóloga forense Rebeca o perseguem.

Trata-se de um texto difícil. Fawcett não tem freios: escreve numa espécie de semi-fluxo de consciência que faz surgir parágrafos que ocupam páginas inteiras. Sua linguagem é carregada de sarcasmo, e o texto é irreverente como um todo. Mas um pouco de comedimento não faria mal: a quantidade de vezes em que o autor repete a mesma informação (por vezes aquela que dera algumas poucas linhas antes, já perfeitamente entendida pelo leitor) chega a irritar, assim como sua inclinação a repetir palavras (pensei em contar quantas vezes Fawcett usa alucinado, mas desisti). O conto acaba ficando muito preso numa coisa só, e há pouca ação. Ainda assim, trata-se de um texto interessante, principalmente o final.

É isso.

Boas leituras.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Resenha: EU SEI O QUE VOCÊ ESTÁ PENSANDO - John Verdon

Ao encerrar a leitura de “Eu sei o que você está pensando” (Arqueiro, 352 páginas), romance de estreia do norte-americano John Verdon, e me pôr a pensar no que escreveria numa futura resenha do livro, três certezas imediatamente me vieram à mente: 1) eu tinha acabado de ler um thriller policial de muita qualidade; 2) Verdon dá uma verdadeira aula de como sugar o leitor para dentro da narrativa; 3) o mesmo Verdon dá outra verdadeira aula de como NÃO se deve entregar o clímax de um romance como esse. Bem resumidamente, é isso que tenho a dizer sobre o debute do autor - que chegou a despertar certas comparações com as histórias protagonizadas por Sherlock Holmes -, lançado há poucos meses no Brasil.

O mistério se inicia quando o detetive aposentado David Gurney recebe a visita de um antigo colega de universidade, o ex-alcóolatra e agora escritor de autoajuda Mark Mellery. Consumido pelo medo, Mellery conta a Gurney sobre os poemas ameaçadores que vem recebendo, todos fazendo referências a seu passado sombrio e condenável. E há ainda o mais inconcebível: o remetente, de alguma maneira, parece conhecer seus segredos a tal ponto de conseguir prever, com acerto, que número entre 1 e 1000 viria à mente de Mellery quando lhe fosse pedido para escolher um, aleatoriamente. Atormentado por seus próprios fantasmas do passado – um filho com quem não tem contato, uma esposa de quem se afasta cada vez mais –, Gurney mergulha no drama do colega, só para ter de lidar com seu brutal assassinato. Agora, o detetive precisa esquecer a aposentadoria e se lançar à caça de um assassino insano e brilhante.

Nota-se da parte de Verdon uma enorme ousadia neste seu primeiro romance. Sem medo de mirar alto demais, o autor despeja uma série de mistérios na primeira centena de páginas, capturando de imediato o interesse do leitor, que não tem como não se perguntar como o autor fará para prover respostas satisfatórias a eles. A própria ideia de um psicopata que consegue adivinhar em que número sua vítima pensará funciona muito bem dentro da narrativa criada: estabelece imediatamente a inteligência e sagacidade do vilão – cuja identidade só descobriremos no final, naturalmente –, bem como o envolve num aura de ameaça, essencial para que o temamos e acreditemos em sua atuação, sempre um passo a frente do que a polícia consegue calcular. E à medida que a trama engrena e mais gente começa a aparecer morta, vamos penetrando lentamente na mente do assassino, e, de quebra, na do protagonista David Gurney, que representa um pouco forte a parte em “Eu sei o que você está pensando.”

O ex-tira com um trauma no passado é um clichê recorrente em histórias policiais. Ainda mais se o mesmo ex-tira tem problemas em seu relacionamento por não conseguir abandonar suas inclinações investigativas. Nesse sentido, David Gurney segue a cartilha a risca: a morte do filho mais de uma década atrás, combinada ao casamento cada vez mais problemático com Madeleine – e, de quebra, o pouco contato com o filho Kyle, fruto de um casamento anterior – fazem dele uma figura ressequida em termos de relações humanas, o que torna ainda mais indispensável para o personagem o refúgio no mundo dos crimes, onde seu raciocínio rápido e linear lhe garante alguma segurança. Toda a composição de Gurney funciona muito bem não só no sentido de prover um bom adversário ao assassino que logo de cara sabemos ser brilhante e imprevisível, mas também um protagonista cujos dramas realmente soam convincentes e profundos para o leitor.

Gurney é essencialmente cerebral, lógico-dedutivo, na tradição de um Hercule Poirot ou um Sherlock Holmes, detetives clássicos da literatura policial, que conseguiam concentrar suas atenções em detalhes facilmente ignoráveis que, no entanto, guardavam a chave para a solução dos mistérios em que se envolviam. A diferença é que aqui o autor precisa a todo custo dar um tom de verossimilhança à narrativa – nem sempre presente nas histórias de Agatha Christie e Conan Doyle, que escreviam para outra audiência em outra época –, o que implica em não exagerar demais nas capacidades detetivescas de Gurney. Trata-se de um equilíbrio frágil entre estabelecer e demonstrar a inteligência do protagonista e não abusar a ponto do leitor considera-lo brilhante demais. E Verdon consegue esse equilíbrio na maior parte da história, embora tropece aqui e ali, e Gurney apareça com algumas deduções um tanto inacreditáveis.

Os outros personagens que cruzam as páginas de “Eu sei o que você está pensando” têm seus altos e baixos. O autor carrega particularmente a mão na composição de Rod Rodrigues, capitão da polícia cujo único papel parece ser demonstrar incompetência. Jack Hardwick, policial parceiro de Gurney durante a investigação, convence pelas boas tiradas cômicas e desbocadas. O promotor Sheridan Kline funciona na maior parte do tempo, mas não teria sido má ideia humaniza-lo minimamente (Verdon reforça a cada nova aparição do sujeito seu anseio por impressionar a imprensa). Mas, de todos os coadjuvantes, não há quem funcione melhor que Madeleine, esposa de Gurney, habilmente construída para ir tornando-se, ao longo da narrativa, um poderoso elemento não só de conflito, mas de redenção para o protagonista.

O desenvolvimento na trama é evolvente. As etapas da investigação, a especulação acerca dos métodos do assassino, suas misteriosas mensagens, sua patologia psicopata, tudo isso arrasta o leitor para dentro da narrativa – e aumenta a expectativa para o desfecho. E é quando esse momento chega que Verdon paga o preço por ter ousado demais. O clímax, que deveria ser um momento de fôlego, de virar as páginas apressadamente, arrasta-se por mais tempo do que o necessário, prejudicado pela necessidade do autor de providenciar respostas para todas as perguntas suscitadas anteriormente. O resultado não chega a ser frustrante – embora a identidade do assassino também não seja a maior das reviravoltas –, mas fica a impressão de que Verdon tentou encaixar coisas demais num espaço muito pequeno, sabotando aquele que deveria ser o ápice da história. A bonita cena final deixa o cenário arranjado para uma continuação, já lançada lá fora, mantendo, talvez apropriadamente, algumas interrogações sobre Gurney e todos os seus dramas.

Resta esperar para ver se Verdon repete os problemas deste “Eu sei o que você está pensando”, ou se consegue contorna-los, criando uma história mais redonda.

Boas leituras.

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