quinta-feira, 14 de julho de 2011

Resenha: PEDAÇO DO MEU CORAÇÃO - Peter Robinson

Peter Robinson iniciou a série protagonizada pelo detetive-inspetor Alan Banks em 1987, e não parou mais desde então. É um daqueles caras que emplaca um personagem e passa anos a fio inserindo-o nas mais intrincadas e inacreditáveis investigações, terminando por se tornar popularíssimo em seu país de origem, a Inglaterra. “Pedaço do meu Coração” (Record, 444 páginas) foi o seu quarto livro lançado no Brasil (o segundo foi “Brincando com Fogo”, cuja resenha você pode conferir aqui), e mostra a habilidade de um autor calejado e completamente a vontade no gênero que o consagrou.

Separados por 35 anos, dois assassinatos aparentemente desconectados mobilizam Banks e o conservador detetive Stanley Chadwick. O primeiro tem que entender o que há por trás da morte de um homem cuja única informação disponível é o nome, Nick, pouco antes de um blecaute numa região erma de Eastvale; numa narrativa paralela, Chadwick assume o caso de esfaqueamento de uma jovem não identificada durante um superlotado festival de rock no final dos anos 60. As duas investigações, é claro, guardam mais em comum do que se pensa inicialmente, e os segredos do passado estendem suas sombras até o presente.

A história é contada por meio de constantes saltos no tempo. Numa cena temos a polícia descobrindo o cadáver da moça desconhecida trinta anos atrás e, na seguinte, após um corte (geralmente representado por um espaçamento maior entre parágrafos), pulamos para o presente e somos apresentados ao caso que Banks e sua equipe têm de resolver. Algo como duas novelas independentes que se intercalam em momentos específicos. Trata-se, a meu ver, de uma estratégia um tanto arriscada: o autor corre o perigo de não conseguir manter ambas as narrativas interessantes e deixar o ritmo cair; a abordagem um tanto detalhista de Robinson em relação ao trabalho policial em si colabora nesse risco. É um enorme número de personagens que cruza as páginas do romance, e cada um deles tem seu momento de interrogatório; além disso, os demais procedimentos e etapas das investigações são abordados detidamente. Contudo, a experiência do autor na prosa, na criação e desenvolvimento de personagens, e, sobretudo na condução do suspense, impedem que a constante alternância entre duas tramas transforme o livro numa experiência enfadonha. Robinson mantém-se dinâmico e não deixa a peteca cair.

Os detalhes vão surgindo de maneira gradual, o que certamente agradará os fãs de policial que apreciam uma trama bem urdida que vai envolvendo aos poucos, até o ponto de não ser mais possível parar de virar as páginas. Quando pistas do assassinato de 1969 começam a encontrar eco na investigação de Banks, e certos personagens reaparecem 35 anos após contracenarem com Stanley Chadwick, o leitor estará totalmente fisgado. É digna de nota também a construção dos personagens mortos da história. À medida que as perguntas vão sendo feitas e respostas são obtidas, a personalidade de ambos torna-se mais e mais nítida, e, juntamente com os detetives à frente das investigações, o leitor vai tomando conhecimento, de maneira intuitiva e crescente, de quem aquelas pessoas eram, suas peculiaridades e os possíveis motivos pelos quais poderiam ter sido mortas. Robinson dispensa uma atenção que até poderia ser considerada exagerada a certos personagens secundários, nos quais concentra-se sem torna-los efetivamente importantes para a trama, mas é uma falha perdoável considerando o todo.

Bastante à vontade com seus personagens usuais, principalmente o protagonista Alan Banks, o autor divide bem o tempo entre retratar suas ações dentro da investigação e fora dela, em suas vidas pessoais. Da visita inesperada do filho de Banks, Brian, ao pai, ao conflito da detetive Annie Cabbot com sua superintendente, vamos conhecendo e nos aproximando mais dos protagonistas. Banks, com seu método um tanto caótico e ao mesmo tempo uma inteligência invejável (que não deixa de falhar às vezes) mostra-se um protagonista forte o suficiente para carregar a história. Enquanto isso, Stanley Chadwick surge embebido em diversos clichês do gênero – o policial melancólico traumatizado pela guerra, meticuloso e cheio de preconceitos –, mas não deixa de convencer; a relação entre ele e sua filha Yvonne acaba se tornando uma das âncoras na narrativa. Em sua ampla maioria, os demais personagens – que quase sempre surgem como suspeitos – mostram-se humanos e críveis, mesmo quando não escapam de certos estereótipos.

Demonstrando mais uma vez a experiência e desenvoltura, Robinson mantém, como convém a um bom romance policial, o suspense até o último capítulo, onde a história culmina numa resolução satisfatória, embora coroada com um clímax um tanto raso. De todo modo, o autor ganha pontos pela ótima construção da trama, pela boa reviravolta apresentada e pela carga dramática impressa nos diálogos quando necessária. Um legítimo pageturner de um cara que, após tantos anos, já sabe bem o que fazer dentro do gênero. Fica a recomendação.

Boas leituras.


sábado, 9 de julho de 2011

A Batalha das Pontes.

Ontem comentei lá no Twitter sobre um episódio curioso que rolou esse ano, num Skoob Encontro, no Rio. Nunca havia ido a nenhum desses encontros, mas um amigo me falou que o tema da vez seria romance policial, e eu nunca perco uma oportunidade de bater papo sobre isso. O encontro em si foi bacaníssimo: a galera mais por dentro do gênero dando dicas de autores que achavam o máximo para os que liam menos, todos elencando seus favoritos e detestados, e até um debate rápido sobre o porquê do gênero nunca ter dado muito certo no Brasil rolou mais pro final; uma tarde bem agradável, enfim. A situação engraçada rolou antes do encontro em si começar, quando todos estavam em grupinhos, socializando.

Um grupo de pessoas conversava sobre livros de fantasia. Vampiros, anjos, Percy Jackson, por aí a fora. Não estou muito por dentro desse universo, de modo que, pra entrar na conversa, falei sobre o sabia. Perguntei ao grupo se algum deles já havia lido “A Batalha do Apocalipse”, do Eduardo Spohr. Negativas. Não tinham lido. Mas uma das integrantes do grupo falou um pouco mais sobre isso.

Em suma, ela disse que tinha ficado super a fim de ler o livro naquele momento de boom pouco depois do lançamento; parecia ser interessante. Mas desistira. O motivo? Bem, ela descobrira que há uma cena no livro em que dois anjos batalham... na Ponte Rio-Niterói. Isso, ela disse, minou sua vontade de ler o livro. Afinal, era a Ponte Rio-Niterói, cara. Aquela ali. Imagina se a Ponte combina com dois anjos sinistros batalhando?

Ponte Rio-Niterói, Brasil. Se você fosse um anjo guerreiro com uma missão, teria dito a seu um oponente, ao encontrá-lo por lá: "Pô, cara, bem caído aqui. Vamos dar um pulo em outro lugar."


Minha reação foi primeiro de riso, mas depois se transformou num pouquinho de irritação. Eu tentei entender a lógica, juro. Mas, falando sério, não tem lógica nenhuma nesse raciocínio. Pode procurar que você não vai achar.

Em linhas gerais, dá pra entender o porquê de a Ponte Rio-Niterói tê-la repelido como leitora. Todo aquele papo sobre o mercado investir muito mais no que vem de fora do que no que é produzido aqui dentro, e isso levar a uma espécie de preconceito com a literatura de gênero brasileira, me parece ser uma realidade ainda para muitos leitores brasileiros. Por isso falei a ela, alto o suficiente para que todo o grupo ouvisse: “Se a briga entre os anjos fosse na Ponte Golden Gate, lá em São Francisco, duvido que você ter um problema com isso”. Não lembro direito de sua resposta, do que ela disse exatamente; o que me lembro foi que ela não disse nada que enfraquecesse minha tese. Da qual eu continuo muito convencido, diga-se de passagem.

Não sou um purista chato que acha que autor brasileiro DEVE escrever histórias passadas no Brasil; também não é um pensamento faça lá muito sentido. Acho que uma boa história vem antes da ambientação. Brasil, Estados Unidos, França, Bósnia e Herzegovina: se o autor conhece o lugar que ambienta sua trama, se sabe do que está falando, por mim tá tranquilo. É claro que se pode argumentar que, sendo brasileiro, faz muito mais sentido escrever sobre o Brasil e que, em se tratando de literatura de gênero, como é a fantástica, que vive um bom momento em termos de produção e aceitação, seria importante produzir mais e mais histórias que se passem em nossa terra, justamente pra tentar naturalizar a coisa e afastar um pouco aquela ideia de que autor bom só mesmo os de lá de fora. E eu concordaria com isso. Mas, novamente: boas histórias vêm antes da ambientação. Se você consegue escrever sobre um outro país que não o seu com desenvoltura, vá em frente; se, ao contrário, quiser usar como cenário a rua da sua casa, que fica numa cidadezinha no interior do estado, também está ótimo. Desde que se criem boas histórias.

Golden Gate Bridge, São Francisco, EUA. Aqueles rastros de luz ali embaixo não deixam dúvida: é aqui que os anjos vêm pra saírem no pau.


Agora, o problema começa quando esse elemento passa a ser tomado isoladamente para desmerecer uma obra. Sim, uma ambientação desastrada pode comprometer a melhor trama do mundo, mas isso independe de onde a trama está se passando em primeiro lugar. Se o cara não souber do que está falando – ou não tiver uma boa habilidade de descrição –, um abraço. E não importa se ele estiver escrevendo sobre Paris, Rio de Janeiro, um mundo fantástico criado na cabeça dele ou fanfic de “O Senhor dos Anéis”.

“A Batalha do Apocalipse” é divertido e bem escrito, proporcionando bons momentos de entretenimento. Os problemas que o livro em minha opinião apresenta passam longe de ter a ver com os lugares que o autor decidiu utilizar como cenários de sua história. Dito de outra forma, a Ponte Rio-Niterói é um bom lugar para anjos se enfrentarem na mesma medida que a Golden Gate seria. Devíamos prestar atenção muito mais em como o autor descreve a luta, qual a função dela dentro da narrativa, como ela ajuda no desenvolvimento dos personagens, coisas assim.

Me agrada muitíssimo ler um livro de gênero (seja policial, fantasia, ficção científica, terror), ou mesmo um conto, escrito por um brasileiro e passado no Brasil, pois é o país onde vivo e em cuja cultura estou imerso. Um reply que recebi de um amigo ontem, após o comentário no Twitter, resume esse raciocínio. Disse ele (que não leu “A Batalha do Apocalipse”): “Batalha na ponte Rio-Niterói parece irado demais. É muito melhor ler algo quando a gente conhece os arredores”. Ao que eu respondi: “Esse é justamente o ponto”.

Nem todos os escritores brasileiros farão dessa forma, no entanto. Sem problemas: o lugar onde você escolher ambientar a sua história não influenciará por si só na qualidade dela. A não ser que você não capriche. Então, já sabe.

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